A psicanálise da humanidade não é a psicanálise do Ocidente

O ocidental, meramente fruto de uma massificação global, acabou por acreditar que o mundo inteiro pensa e sente absolutamente tudo aquilo que ele pensa e sente, inclusive da mesma forma que ele. Assim, para o ocidental, o mundo inteiro deve ser submeter à mesma moral e ética que ele, como se o mundo inteiro fosse uma coisa só, não havendo sequer espaço para reflexão sobre potenciais outros olhares sobre a vida. Na contemporaneidade, percebe-se como esse totalitarismo impregnado no ocidental também faz querer crer que a psicanálise da humanidade também é apenas uma só.

O ocidental, que há séculos cuspira em suas tradições que lhe forjaram, viciado em pornografia, masturbação, internet, redes sociais, celulares, bundas, peitos e demais satisfações sensoriais efêmeras e viciosas, vê o mundo inteiro como um mundo que também cuspira em suas tradições e viciado em tudo aquilo que ele, como se o mundo, assim como ele, também não tivesse mais esperança. Se vê, então, mesmo que de forma inconsciente, a aplicação de um totalitarismo na análise das mentes das pessoas do planeta, como se todos pensassem e sentissem exatamente da mesma forma que o Ocidente.

Para o ocidental, o mundo inteiro é feito de pessoas que morrem de medo de ser “canceladas”, o mundo inteiro é feito de pessoas que morrem de medo de não terem seguidores e inscritos nas redes sociais, o mundo inteiro é feito de pessoas que não conseguem mais ter uma relação amorosa saudável porque estão destruídos pela pornografia e pela masturbação e o mundo inteiro tem todos os transtornos mentais que ele. Entretanto, isso não apenas não condiz com a realidade do planeta como também acaba evidenciando uma mentalidade narcisista através desse totalitarismo impregnado.

O mundo não é unipolar para que haja uma psicanálise única a interpretar todos os símbolos, afetos e sintomas de todas as pessoas do planeta. O mundo é multipolar e, assim, há várias mentes, havendo assim a necessidade de “várias psicanálises”. Além de o Ocidente protestante existem outros pólos de existência na Terra com evidente destaque cultural, intelectual, moral, ético e religioso, como a Rússia ortodoxa, a China confucionista, a Índia hindu e o mundo islâmico e nem mesmo o maior dos liberais poderia dizer que um russo, um chinês, um indiano e um muçulmano têm uma mente como a de um ocidental.

As ansiedades, angústias e medos que são temas de abordagem pelo meio psicanalítico ocidental contemporâneo dizem respeito ao Ocidente contemporâneo, não aos demais pólos de tradições dispostos pelo planeta. A psicanálise ocidental contemporânea não pode dizer que “o mundo sofre” com alguma coisa aqui ou lá, mas poderia falar apenas por si, falar apenas do ocidental, tendo em vista que existem outros pólos de existências plenas e efetivas com suas respectivas mentalidades. Quem autoriza a psicanálise ocidental contemporânea a falar pelo restante da humanidade?

Um jovem ocidental pode se sentir completamente angustiado se tiver que trabalhar aos 25 anos de idade para ajudar em casa, enquanto que um russo de 18 anos está absolutamente familiarizado com o sair de casa e ir fazer sua própria vida. Logo, não se pode dizer que os “jovens do mundo” estão sofrendo pela transição entre adolescência e fase adulta, pois a infantilização que mantém um jovem parasitando seus pais mesmo depois de adulto está essencialmente ligada ao Ocidente, não aos outros “mundos”. Se o jovem ocidental sofre por ter que trabalhar, isso é com ele, não com o mundo todo.

Um homem adulto ocidental pode se sentir completamente angustiado por não ter uma conta bancária com uma renda que lhe permita viver de juros e não ter mais que trabalhar para viver, enquanto que um homem adulto indiano se sente absolutamente feliz e realizado por ter uma casa ligada à uma rede de esgoto. Logo, não se pode dizer que os “homens” do mundo estão sofrendo por questões financeiras. Se o homem adulto ocidental sofre por não poder se aposentar com 35 anos de idade e passar o resto da vida em casa sem fazer coisa alguma, apenas engordando, isso é com ele, não com o mundo todo.

Um idoso ocidental pode se sentir completamente angustiado por ter chegado na velhice, ter se aposentado e não ter encontrado mais sentido para a vida, enquanto que um idoso chinês trabalha até o fim da vida, pois entende que trabalhar é importante. Não é em todo mundo que as pessoas pensam que se aposentar significa permissão para não precisar trabalhar. Logo, não se pode dizer que “os idosos do mundo” estão sofrendo por não saberem o que fazer na velhice. Se o idoso ocidental sofre por não saber o que fazer com a velhice, isso é com ele, não com o mundo todo.

Uma mulher ocidental pode ser sentir absolutamente angustiada se tiver que abdicar de sua carreira profissional para ficar em casa cuidando do marido e dos filhos, pois ela preferia dedicar sua vida a seu empregador para ganhar dinheiro para comprar coisas, mas, para uma mulher muçulmana, ficar em casa cuidando do marido e dos filhos é a missão dela na vida e ela não delegaria essa missão para qualquer outra pessoa. Logo, não se pode dizer que as “mulheres do mundo” estão sofrendo pelo “dilema” de ter filhos ou não. Se as mulheres ocidentais sofrem com isso, isso é com elas, não com o mundo todo.

O totalitarismo do globalismo pulsa nas veias do ocidental trazendo uma certeza ilusória de que o mundo possui apenas uma polaridade – a polaridade do liberalismo globalista – e que o mundo inteiro pensa ou está para pensar de apenas uma única forma e os efeitos dessa mentalidade refletem inclusive na psicanálise na medida em que a psicanálise ocidental contemporânea trata os problemas do ocidental como se fossem os problemas da humanidade inteira, mas isso de fato não corresponde à realidade, tendo em vista em que vivemos em um mundo multipolar.

Ao falar da psicanálise contemporânea no Ocidente é preciso restar claro que se está a falar, via-de-regra, na mentalidade ocidental liberal – eis que o totalitarismo globalista só permite essa única forma de pensamento a ser considerado. Assim, cabe aos demais pólos de existência global desenvolverem suas próprias compreensões de mente coletiva com base em seus próprios símbolos, afetos e sintomas para que possam assim desenvolver a prática psicanalítica mais adequada à sua própria realidade. A psicanálise é feita por pessoas e pessoas têm suas limitações.

Por mais que seja certo que a psicanálise rompe barreiras – e o Inconsciente não as tem -, é preciso lidar com as muitas limitações humanas, principalmente em relação às pessoas que só conseguem ver unipolaridade em um mundo visivelmente multipolar. É importante compreender que além das fronteiras ocidentais existe um mundo maior que o do Ocidente, com bilhões de pessoas forjadas em tradições, culturas e religiões diferentes e que não pensam como os ocidentais para que os ocidentais queiram pensar que todos sofrem como eles mesmos. É assim que a psicanálise funciona: cada um com seus problemas.

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